O direito das sucessões é o ramo do direito civil que disciplina a transmissão dos bens, valores, direitos e dívidas deixados pela pessoa física aos seus sucessores, quando de sua morte. A partir dessa premissa, o presente ensaio visa compreender e analisar o instituto da multiparentalidade, enquanto fenômeno jurídico, e seus efeitos no direito sucessório, em especial à possibilidade de cumulação de heranças, tendo por objetivo aprofundar a matéria estudada durante módulo.

O direito à sucessão hereditária, de viés constitucional, está previsto no art. 5º, XXX, da Carta Magma[1], e tem por pressuposto a morte de alguém que adquiriu bens durante sua vida (bens que integram seu patrimônio jurídico). Para Paulo Lobo[2], a herança pode ser compreendida de modo amplo, já que “compreende tudo que se transmite do de cujo a seus sucessores, de acordo com a lei ou de acordo com suas últimas vontades”.

A transmissão de ascendentes para descendentes, objeto deste ensaio, ocorre por força da lei e obedece a ordem de vocação prevista no art. 1.829 e incisos, do Código Civil[3], com nítida motivação no Direito de Família. A família, então, representa fenômeno social e jurídico: social porque é a base da sociedade, e jurídico porque merece atenção e proteção por parte do Estado, que deve se manter atento e contemporâneo às transformações sociais.

Observa-se, já há algum tempo, a parentalidade familiar não só apenas pelo aspecto biológico, mas também pelo aspecto afetivo. Trata-se, pois, de instituto conhecido como filiação socioafetiva (ou afetiva, apenas), entre indivíduos sem laços biológicos, que estabelecem relação de pais e filhos, tendo como base a convivência social e a afetividade recíproca entre eles, no conceito de Maria Berenice Dias[4].

No entanto, não raro, percebe-se a existência de vínculo socioafetivo entre filhos e pais não biológicos e vínculo entre filhos e pais biológicos, concomitantes, como verdadeira coexistência, sem que um venha a suprimir o outro. Esta, cada vez mais, é a realidade da vida, e, por assim ser, merece ser admitida e comtemplada pelo direito, já que, uma vez reconhecida a posse de estado de filho com mais de duas pessoas, todos os efeitos daí decorrentes devem ser reconhecidos.

A situação narrada no parágrafo antecedente, portanto, passa a ser reconhecida através do instituto da multiparentalidade, que começou a ganhar força com a promulgação da Constituição de 1988, ao trazer os princípios da igualdade de filiação (não havendo mais distinção entre filhos havidos ou não no casamento, ou adotivos e afetivos) e do livre planejamento familiar.

Entretanto, embora os tribunais e a doutrina venham reconhecendo com facilidade a parentalidade socioafetiva, entendimento, este, que decorre de uma obrigação constitucional, não se verifica esta mesma facilidade quanto ao reconhecimento dos direitos sucessórios, especialmente no que diz respeito à cumulação de heranças de mais de um pai ou de uma mãe. Se, de um lado se reconhece a filiação afetiva para todos os efeitos, porque se discute a possibilidade de cumulação de heranças?

Inicialmente, a partir de breve análise do ordenamento jurídico brasileiro, tanto das normas constitucionais como infraconstitucionais, tem-se que não há qualquer vedação legal que impossibilite a cumulação de heranças oriundas de vínculos biológico e socioafetivo. Ao revés, a partir da interpretação sistemática, a lei (em sentido amplo) veda a discriminação entre filhos, não havendo, para todos os fins, distinção entre aqueles vinculados pelo sangue daqueles vinculados pelo afeto.

Com efeito, em muitos casos, os tribunais vêm emendando que o vínculo afetivo, haja sua natureza, deve sobressair ao biológico. A questão, notadamente, chegou ao Supremo Tribunal Federal, através do RExt nº 898.060/SC, remetendo que, “nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos”[5].

Como se vê, a Corte da Cidadania, além do princípio da igualdade, valeu-se também do princípio do melhor interesse do filho (nítido liame com o princípio do melhor interesse da criança) no reconhecimento do direito à multiparentalidade, uma vez que, do contrário, admitir-se-ia que, a fim de preservar a paternidade ou maternidade biológica, aquele ou aquela que anos cuidou de seu filho, perdesse a qualidade de pai ou de mãe, ou vice-versa.

Para tanto, a Suprema Corte emendou o Tema 622, de repercussão geral, dispondo que a “paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”[6]. Nesta linha, admitindo-se que uma pessoa tenha mais de um pai ou mãe, poderá esta pessoa requerer o seu correspondente de quinhão hereditário deixado pelos seus dois pais ou duas mães, porquanto oriunda da vocação hereditária paterna e/ou materna.

Dessa forma, conclui-se que a igualdade entre os filhos, sejam eles oriundos de vínculo de sangue, ou não, deve existir em todo e qualquer caso, não havendo mais espaço para discussões entre filiação biológica e afetiva para fins de direito sucessório, sendo vedada qualquer tipo de discriminação. A cumulação de heranças, portanto, não é apenas permitida, mas medida de igualdade, cabendo ao interessado a sua consequente quota parte de tantos quantos forem seus pais (mais de uma mãe ou pai, ou ambos).


[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília/DF, 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 27 jun. 2020

[2] LOBO, Paulo. Direito civil v 6 – sucessões. Editora Saraiva, 2019. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553607914/ . Acesso em: 28 jun. 2020

[3] BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília/DF, 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 27 jun. 2020.

[4] DIAS, Maria Berenice Dias. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 2011.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RExt nº 898.060/SC. Recorrente: NA. Recorrido: FG. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília/DF, 21 de novembro de 2016. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13431919. Acesso em: 28 jun. 2020.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 622: Prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica. Diário da Justiça Eletrônico, 21 de novembro de 2016. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4252676&numeroProcesso=692186&classeProcesso=ARE&numeroTema=622# . Acesso em: 28 jun. 2020.

Escrito por

Rodrigo Becker Evangelho

Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria - FADISMA, especialista em Direito e Processo Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP, formado em Técnico em Informática pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, e graduando em Ciências Contábeis pela mesma instituição (UFSM).