A propriedade, assim como o direito patrimonial em geral, passa por um momento paradigmático, onde está se moldando à luz dos valores esculpidos na Constituição Federal, dentre os quais está a função social da propriedade, de onde se extrai o objeto do presente post, quer seja a possibilidade de usucapião entre herdeiros.

Esta mudança tende a modificar todos os preconceitos civilistas clássicos sobre os temas patrimoniais, pois uma propriedade não utilizada, sequer em composse, não está cumprindo sua função social e não pode ser considerada, aos princípios fundamentais regentes, como imprescritível, como bem ensina Celso de Mello[1]:

Inércia, omissão e desinteresse do proprietário são sancionados pela perda do domínio, em favor, precisamente, daquele que, possuindo o bem pro suo, vem a dar-lhe a destinação e a utilização reclamadas pelo interesse social. A ratio do usucapião, inegavelmente, é a promoção do bem comum. A função social inerente à propriedade justifica a perda do domínio, em favor do possuidor, por via do usucapião.

Superado, em síntese, a prescrição usucapiendi necessita de três requisitos básicos para a sua existência no plano jurídico. Posse, tempo e previsão legal. A posse deve ser dotada de animus domini, um requisito subjetivo do possuidor, a exteriorizar a sua intenção de ser dono, somada aos requisitos objetivos, sendo ela pacífica, pública e contínua. Alcançando o lapso temporal exigido pela lei, variável conforme as diversas modalidades, o possuidor, então, adquire os direitos sobre a propriedade.

Nesse esteio, surge a discussão sobre a possibilidade jurídica da ocorrência da usucapião por um herdeiro, havendo bens a inventariar, em face dos demais (equiparação a condôminos).

No tocante à matéria, de prescrição aquisitiva entre herdeiros, já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça (In REsp – 79.834, Relator Ministro Moreira Alves), entendendo que, havendo manifesta posse exclusiva por um dos herdeiros (dentro dos critérios objetivos e subjetivos), há a exclusão dos demais, in verbis:

[…] não há dúvida de que um condômino pode usucapir parte da gleba, ou toda ela, conforme sua posse se localize numa parcela, devidamente delimitada, ou em todo o imóvel, desde que haja sobre ela a posse própria, ou seja, posse em que o possuidor tenha a intenção de possuir pro suo, intenção essa que se manifesta por atos exteriores de posse exclusiva, e, consequentemente, impeditiva da posse dos demais condôminos.

A matéria, de antigas discussões, também já foi debatida no Supremo Tribunal Federal – STF (em tempos mais longínquos), que sempre ementou no mesmo sentido do STJ, conforme, a título de exemplo, o seguinte julgado:

AÇÃO DE DIVISÃO DE CONDOMÍNIO. Admite-se usucapião por um dos condôminos, de todo o imóvel, quando ele prove posse própria (posse com a intenção de ter a coisa exclusivamente para si), decorrente de atos inequívocos. Extinto, assim, o condomínio, não há que pretender-se a divisão do que já não existe em comum. Acórdão, que, com base na prova, julga improcedente ação divisória por entender existente o usucapião em favor de um dos condôminos sobre a totalidade do imóvel, não viola o artigo 629 do Código Civil, nem o artigo 415 do antigo Código de Processo Civil. Recurso extraordinário não conhecido (RE nº 79834/MG-Minas Gerais. Relator Ministro Moreira Alves, Segunda Turma, julgado em 31/10/1975)

Desse modo, tem-se por pacífico o entendimento jurisprudencial das Cortes Superiores pela possibilidade jurídica de usucapião por um dos herdeiros em relação aos demais, desde que satisfeitos os requisitos para sua conjectura.

O Princípio da Saisine, como cediço, confere a transmissão da posse da totalidade dos bens aos herdeiros no momento da morte do “de cujos”, sendo que, até a partilha, nenhum herdeiro possui a posse exclusiva sobre eles. Esta, portanto, é a regra.

Logo, havendo sucessores a serem contemplados numa mesma herança, não é válido se utilizar da usucapião, pois a herança é uma universalidade, um todo, achando-se em comum os bens do acervo hereditário, até a ultimação da partilha, onde se terá o condomínio de direito.

Tal concepção, no entanto, somente é válida conquanto subsistir a composse entre os herdeiros, consoante previsão do art. 1.199, do Código Civil (já que se amolda a um condomínio), que, uma vez inexistente, começar-se-á a fluir o prazo prescricional aquisitivo da propriedade.

De tal sorte, entende a doutrina por aquele que, seja herdeiro ou condômino, pleitear usucapião contra seus consortes, deverá provar que cessou de fato a composse, de maneira que só a partir de então será estabelecida a posse exclusiva, pelo tempo necessário, com os demais requisitos que a usucapião requer, que fará jus, então, a aquisição da propriedade.

Por esta razão, entende-se por possível a usucapião entre herdeiros, desde que haja a ruptura da composse por um dos sucessores, momento em que a posse passa a ser exercida com animus domini unici, que se traduz, de modo inequívoco, com a exclusão dos demais.


[1] MELLO, José Celso de. Constituição Federal Anotada, p. 500.

Escrito por

Rodrigo Becker Evangelho

Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria - FADISMA, especialista em Direito e Processo Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP, formado em Técnico em Informática pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, e graduando em Ciências Contábeis pela mesma instituição (UFSM).