O direito à propriedade, assim como o direito patrimonial em geral, passa por um momento paradigmático, em que está se moldando aos valores esculpidos pela Constituição Federal, dentre os quais está a função social da propriedade. Por assim dizer, tem-se que a utilização/destinação de um bem deve prevalecer sobre o direito de propriedade daquele que não a utiliza (propriedade sem finalidade), fazendo surgir o instituto da usucapião. Logo, o presente ensaio visa aprofundar a matéria estudada durante o módulo (Unidade 4), servindo de ponto de reflexão para aquisição da propriedade de bem imóvel entre herdeiros pela usucapião.

 A mudança, antes descrita, tem por base modificar todos os preceitos civilistas clássicos (passagem do Estado Liberal de Direito para o Estado Social de Direito), pois uma propriedade não utilizada, sem finalidade ou destinação, não está cumprindo sua função social, seja pela inércia, pela omissão ou pelo mero desinteresse do proprietário. Havendo a desídia, logo, merece proteção aquele que, possuindo o bem pro suo, vem a dar-lhe destinação e utilização reclamadas pelo interesse social[1].

Está-se diante, com efeito, da aquisição da propriedade pela forma da usucapião, que necessita de três requisitos básicos, sejam eles: posse, tempo e previsão legal. A posse, a seu turno, deve ser dotada de animus domini, um requisito subjetivo do possuidor, a exteriorizar a intenção de ser dono, somada aos requisitos objetivos, sendo ela pacífica, pública e contínua. Por fim, a posse, tida como qualificada, deve se enquadrar dentre as diversas modalidades (não objeto do presente ensaio) previstas em lei[2].

Neste esteio, por oportuno, surge a discussão acerca da possibilidade jurídica da ocorrência da usucapião por um herdeiro, havendo bens a inventariar, em face dos demais (exclusão). A hipótese, ora levantada, é comumente verificada no cotidiano da vida em sociedade, em que não raro, com a morte do de cujos e havendo bens a inventariar, os sucessores permanecem inertes, mantendo-se os bens em condomínio (transitório) até o devido processamento do inventário e partilha, conforme art. 1.791, parágrafo único, do Código Civil[3], que dispõe que “até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio”.

O Princípio da Saisine[4], adotado pelo ordenamento brasileiro, confere a transmissão da totalidade dos bens aos sucessores no momento da morte, sendo que, até a partilha, nenhum herdeiro possui a posse exclusiva sobre eles. Trata-se, pois, de situação que se amolda (análogo ao condomínio) à previsão contida no art. 1.119, do Código Civil[5], que remete “se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contando que não excluam os dos outros compossuidores”.

No entanto, a parte final trata da hipótese de exclusão de compossuidores em detrimento de um, por atos inequívocos, o que configura nítida ruptura na composse exercida entre os co-herdeiros. A matéria, adianta-se, já fora objeto de debates nas Cortes Superiores no país, de longa data, senão vejamos:

Na espécie, antes da alteração de competências, o Supremo Tribunal Federal, no ano de 1975, já apreciou a legalidade da usucapião entre condôminos, ementando que “admite-se usucapião por um dos condôminos, de todo o imóvel, quando ele prove posse própria (posse com a intenção de ter a coisa exclusivamente para si), decorrente de atos inequívocos”[6].

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o mesmo entendimento fora dado no REsp nº 1.631.859/SP, no seguinte sentido:

O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários. Sob essa ótica, tem-se, assim, que é possível à recorrente pleitear a declaração da prescrição aquisitiva em desfavor de seu irmão – o outro herdeiro/condômino […] [7]

Desse modo, tem-se por pacífico e entendimento jurisprudencial das Cortes Superiores pela possibilidade jurídica de usucapião por um dos herdeiros (condomínio transitório) em face dos demais, desde que aquele demonstre, de modo inequívoco, a posse com animus domini unici, oponível aos demais co-herdeiros.

De toda forma, a posse exclusiva exercida não se confunde com atos de mera permissão, que ensejaria a posse precária (o que tornaria inviável a aquisição usucapiendi), pois não se pode considerar que a precariedade seja eterna, como ocorre com o esbulho e a clandestinidade, que, quando sessados, dão início (marco) à prescrição aquisitiva da propriedade.

Quando instado a se manifestar, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul deu azo a possibilidade de usucapião entre condôminos, estendendo a possibilidade aos herdeiros, remetendo que “a mesma possibilidade se estende entre os herdeiros, de uns usucapirem contra os demais”[8].

Dessa forma, tem-se por possível a usucapião entre herdeiros, desde que este demonstre, de forma inequívoca, a posse com animus domini exclusivo, de modo a excluir os demais co-herdeiros, cumulado com os demais requisitos legais para aquisição da propriedade pela via da usucapião, de acordo com a modalidade pleiteada (caso concreto).


[1] MELLO FILHO, José Celso de. Constituição Federal anotada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986.

[2] VENOSA. Silvio de Savo. Direito Civil – Direitos Reais – Vol. 4, 19ª edição. Grupo GEN, 2019. 9788597020854. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597020854/ . Acesso em: 18 out. 2020.

[3] BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília/DF, 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm . Acesso em: 18 out. 2020.

[4] VENOSA. Silvio de Savo. Direito Civil – Direitos Reais – Vol. 4, 19ª edição. Grupo GEN, 2019. 9788597020854. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597020854/ . Acesso em: 18 out. 2020

[5] BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília/DF, 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm . Acesso em: 18 out. 2020.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 79.834/MG. Recorrente: Augusta Bergel. Recorrido: Tjong Hiong Oei. Relator: Ministro Moreira Alves. Julgado em 31/10/1975.

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1631859/SP. Recorrente: Maristela Aparecida do Carmo. Recorrido: Carolina Macorate do Carmo – Espólio. Relatora: Nancy Andrighi. Julgado em 22/05/2018.

[8] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70074286527. Apelante: Antonio da Silva Lima e Outros. Apelado: Manoel da Silva Lima. Relatora: Mylene Maria Michel. Julgado em 09/08/2018.

Escrito por

Rodrigo Becker Evangelho

Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria - FADISMA, especialista em Direito e Processo Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP, formado em Técnico em Informática pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, e graduando em Ciências Contábeis pela mesma instituição (UFSM).